quarta-feira, 2 de agosto de 2023

A Umbanda em Guarapari - A História de Leonor Gomes

 

A Tenda Espírita Pai João foi inaugurada no final da década de 1960, na conhecida Rua da Marinha, no bairro Itapebussu. Com uma estrutura semelhante ao terreiro conduzido pela Mãe Maria José, a tenda era ainda maior em largura e comprimento. Devido ao número de médiuns que abrigou e às grandes Giras festivas realizadas durante o tempo em que esteve aberto tornou-se tão famoso quanto o Templo Espírita Caboclo Pena Verde inaugurado pela professora Maria José. Era o terreiro construído pelas mãos de Placedino Marques, marido de Leonor Maria Gomes.
Leonor teve uma trajetória parecida com a de Maria José, o que explica a empatia que havia entre as duas amigas de infância. Órfã ainda na adolescência abraçou para si a tarefa de cuidar das quatro irmãs mais novas e de manter o equilíbrio emocional de outros três irmãos. Nascida em Anchieta, no Espírito Santo, chegou à cidade vizinha Guarapari e estabeleceu-se em casa de um dos irmãos que já estava casado levando consigo uma de suas irmãs. Mas, a estadia demorou pouco tempo. Sua cunhada era dona de um temperamento forte e por vezes aconteciam acirradas discussões domésticas. Numa dessas brigas, Leonor e a irmã Maria da Penha foram expulsas pela cunhada e tiveram suas roupas jogadas no meio da rua. Leonor foi abrigada pela então professora do colégio Guarapari, Maria José.
Durante o tempo em que esteve morando com a professora, Leonor aprendeu a costurar e conheceu Placedino Marques, pedreiro muito conhecido na cidade, com quem se casou mais tarde. Ao lado do marido, Leonor ergueu na região central da cidade uma pensão que recebia os turistas que passaram a freqüentar o município a partir do período de expansão da cidade na década de 50. Gentes de todas as partes passavam os verões em Guarapari, famosa no país pela propriedade curativa das areias monazíticas da Praia da Areia Preta. Da pensão, a anchietense assegurava o sustento para si e para as irmãs e sobrinhos que ajudou a criar.
Leonor fora criada na tradição católica da família anchietense, mas era muito curiosa acerca da vida além corpo. Quando adolescente, participava de eucaristias e procissões católicas. Numa dessas ocasiões, interpretou a Virgem Maria na procissão do dia de Nossa Senhora da Conceição. Entretanto, a educação religiosa recebida na infância e na adolescência não impediu a jovem de buscar respostas sobre a vida espiritual. Conforme relatos de alguns conterrâneos, Leonor participava de verdadeiras excursões em direção ao bairro Lameirão ao lado de outros curiosos, dentre eles a Anna Castro Martins, telefonista de Guarapari que iria desempenhar grande trabalho espiritual e caritativo em nome da Umbanda. No bairro Lameirão morava o homem conhecido pela alcunha de Sr. Pimentel o qual realizava sessões espirituais particulares e muitos moradores de Guarapari iam até sua casa para pedir orientações, benzimentos e remédios curativos. Foi por intermédio da curiosidade de Leonor que a amiga Maria José foi curada de um mal súbito que lhe acometeu quando ainda era professora.
Preocupada com a voz de Maria José que subitamente havia faltado, Leonor a aconselhou a sair em visita a um famoso médium curador que estava na capital Vitória. E foi também graças ao interesse pelas coisas do Espírito que Leonor conheceu em sua pensão a mulher que mais tarde seria de crucial importância para sua mediunidade e para o desenvolvimento da religião de Umbanda em Guarapari.
A cura e o retorno da voz acenderam na professora Maria José o interesse pelo ritual mediúnico que ela chamava de espiritismo. A partir do restabelecimento da saúde, Maria José passou a ceder a cozinha de sua residência para que Anna Castro pudesse incorporar o Caboclo Sucupira, o qual já era conhecido entre os moradores de Guarapari.
Em 1962, a mulher carioca conhecida como Dona Liquinha, ou Maria Angélica Brandão, hospedou-se na pensão de Leonor e ambas iniciaram uma forte amizade desde então. Quando visitava Guarapari, no verão, Dona Liquinha saía do Rio de Janeiro trazendo as filhas e todas ficavam hospedadas na pensão de Leonor. Dona Liquinha não escondia sua orientação religiosa e logo Leonor ficou sabendo que ela era Chefe de Terreiro. A novidade encheu os olhos de Leonor de uma alegria intensa. Essa alegria levou Leonor a apresentar Dona Liquinha para Maria José. Desse encontro, revelou-se a missão de Maria José ao mundo. Cabia a ela a tarefa de iniciar o trabalho caritativo de Umbanda e a de levantar um altar em sua propriedade. Em 1964, Maria José deu início ao terreiro de Umbanda do Caboclo Pena Verde, tendo como médium em desenvolvimento a amiga Leonor. Placedino, marido de Leonor, ajudou a construir também o Templo Pena Verde inaugurado em 1967.
Leonor e seu marido integraram a corrente espiritual de Maria José durante certo tempo, até que o Pai João, entidade que se manifestava através da mediunidade de Dona Liquinha, outorgou-lhe a incumbência de erguer outro templo na cidade. Já nessa época, Leonor incorporava o Caboclo Sereno, Espírito dócil, porém rigoroso quanto à seriedade dos trabalhos umbandistas. A missão de Leonor não foi bem interpretada por alguns irmãos de fé. Foi atribuída a ela e ao marido a pecha de invejosos e dissidentes.
Anna Castro havia deixado a erraticidade dos trabalhos e, nesse tempo, o Centro Espírita Santo Antônio de Pádua já estava estabelecido na Rua Getúlio Vargas, no centro da cidade. O terreiro comandado por Maria José também já era conhecido de todos. Mas, a expansão da religião de Umbanda em Guarapari estava apenas começando. Essa expansão era vista com bons olhos pela Espiritualidade Maior.
O terreiro deveria ficar parecido com a Tenda Espírita São João Batista que ela comandava à rua Patagônia, nº 42, no bairro da Penha, Rio de Janeiro.
Em junho de 1968, em uma bela cerimônia que ficou gravada na memória de inúmeros simpatizantes e seguidores da religião de Umbanda, a Tenda Espírita Pai João foi inaugurada sob as ordens e direção do Pai João e da Velha Rosa, Entidades incorporantes da Mãe de Santo Liquinha. É enorme a quantidade de pessoas que guarda da mente e no coração a festa de grande pompa que teve lugar na Rua da Marinha quando da inauguração do terreiro de Umbanda.
A Tenda Espírita Pai João era deveras muito semelhante ao erguido por Maria José no bairro Ipiranga. A semelhança era tanta que dava a impressão de que ambos pertenciam à mesma pessoa. A diferença, porém estava no tamanho e na decoração do altar. A Tenda Pai João era maior e a parede por detrás do altar possuía uma pintura que lembrava o firmamento. Havia também sob o altar uma pequena queda d’água que descia ininterrupta formando uma cachoeira em miniatura. A cachoeirinha formava um lago decorado com plantas vivas e pedras naturais. A Tenda também possuía maior espaço para a assistência que ficava sentada logo atrás dos tablados construídos para os ogãs de toque. A cantina que ficava na entrada do terreiro tinha a aparência de uma antiga casa de madeira. Foi decorada para se parecer com uma pequena cabana do período colonial. Ganhou o título de Cabana de Pai Tomé. A Cabana do Pai Tomé era, ao mesmo tempo, cantina e cozinha especial para a preparação dos alimentos ritualísticos.
Uma grande parte dos médiuns que freqüentavam o Templo Pena Verde mudou-se para a Tenda de Pai João e, pouco tempo depois da inauguração, Leonor foi chamada pela Mãe Liquinha para passar uma longa temporada de vários meses no Rio de Janeiro. Mal sabia ela que algo muito importante estava sendo preparado pela Espiritualidade Maior.
Leonor hospedou-se em casa de Dona Liquinha e recebeu muitas instruções acerca do terreiro recém inaugurado e do ritual que deveria ser seguido pelos médiuns da Tenda. Também recebeu orientações sobre as oferendas e obrigações aos Orixás. Logo após o retorno do Rio de Janeiro, entretanto, a primeira de muitas provações pelas quais Leonor passaria teve início a partir de alguns médiuns da corrente espiritual que, descontentes com o espírito de liderança da médium, enredaram um boato sobre as suas reais intenções. Achavam todos que Leonor queria mandar no terreiro e sobrepujar a autoridade de Mãe Liquinha. Nesse ínterim, o Pai João determinou que Mãe Liquinha viajasse o mais rápido possível até Guarapari e que todos os médiuns se encontrassem no terreiro para uma reunião extraordinária.
No dia marcado para a reunião, o Pai João desceu diante dos médiuns e ordenou que fossem colocados alguns bancos no meio do Congá e que todos se assentassem. O Pai João revelou então que a partir daquela data a médium Leonor iria conduzir os trabalhos da Tenda. Depois de uma longa explanação e exortação acerca do ato traidor de determinados filhos da corrente, o Pai João dirigiu-se a cada médium individualmente. Com autoridade, a Entidade dizia a cada um que se retirasse do Congá e se assentasse nos bancos destinados aos consulentes. Por fim, apenas Leonor, Placedino e outra médium permaneceram nos bancos posicionados dentro do Congá. Pai João então falou, diante dos olhos estupefatos de Leonor, que daquele dia em diante todos os que estavam sentados do lado de fora do Congá não pertenciam mais ao quadro mediúnico da Tenda de Pai João e que deveriam se retirar do terreiro imediatamente.
Assustada, Leonor perguntou ao Guia como seria a Tenda a partir daquela data. Pai João tranqüilizou a médium e disse que não se preocupasse, pois dentro em breve o terreiro estaria novamente repleto de médiuns confiáveis e cheios de amor no coração. E assim, Leonor passou a ser a Dirigente da Tenda Espírita Pai João, tendo à sua mão direita o marido Placedino, encarregado desde então a ser o zelador do terreiro e Cambone do Caboclo Sereno, agora Guia-Chefe da Tenda.
Com o crescimento econômico da cidade, muitos hotéis foram construídos e Mãe Leonor decidiu que deveria abandonar a pensão e transformá-la em lojas comerciais. Assim, a pensão que abrigara muitos turistas deu lugar a diversas lojas. Placedino e Mãe Leonor levantaram então o Restaurante Lagostão que se tornou conhecido e bastante freqüentado por turistas de várias partes do País.
Mãe Leonor dividia seu tempo entre o restaurante e o terreiro de Umbanda, cujas festas de Cosme e Damião, São Jorge, São João e São Sebastião levavam muitos simpatizantes à Tenda. Também ficaram famosas as jangadas feitas de pita que levavam barquinhos em tamanho natural repletos de flores nas oferendas à Iemanjá.
As oferendas para Iemanjá aconteciam na Praia da Areia Preta, nas festas de fim de ano à beira mar. Entre 1970 e 1980 os festejos e as cerimônias dedicadas a Iemanjá lotavam toda a orla do Centro de Guarapari. Muitas pessoas desciam até à Praia da Areia Preta para ver os umbandistas cantando pontos, curimbando ao som dos atabaques e recebendo seus Guias ao ar livre, diante de uma imensa platéia de curiosos e simpatizantes da religião.
Foi a partir de 1980 que o calvário de Mãe Leonor começou de fato a tomar proporções inigualáveis. Apesar de tão querida por todos os que freqüentavam a Tenda de Pai João e de ser guiada pelo amável Caboclo Sereno, Mãe Leonor enfrentou e atravessou quase que sozinha uma imensa provação. Nessa época, sua mentora e Mãe de Santo, Dona Liquinha já havia falecido. Placedino, o maior apoio de Mãe Leonor, entrou num estado de decadência espiritual que acabou por refletir na vida emocional e financeira da esposa.
Trabalhando no serviço público, Placedino envolveu-se com diversos alcoólatras, os quais por sua vez influenciaram negativamente o cambone do Caboclo Sereno. A queda começou com as faltas freqüentes às Giras que aconteciam aos sábados. Passou a ser rotina a abertura de trabalhos sem a presença do braço direito de Mãe Leonor.
A situação piorou quando a bebedeira de Placedino passou a ser diária. Todos os dias, Placedino chegava em casa transformado pelo álcool, na hora das refeições ou no meio da tarde. As brigas e as discussões acaloradas eram constantes, ao ponto de chegar à agressão física contra a própria Mãe Leonor. Certa vez, ela recebeu sobre o seu corpo um prato cheio de feijão quente arremessado pelo marido furioso. Sofrendo com toda aquela situação, Mãe Leonor viu a sua vida de tantas lutas entrar num turbilhão de acontecimentos ruins. O choro, antes das sessões de Umbanda, era inevitável. De vez em quando, o terreiro ficava de portas fechadas nos dias de Gira. Mãe Leonor, envolvida com as confusões provocadas pelo marido, não encontrava forças para sequer sair de casa, no Centro da cidade, e dirigir-se ao bairro onde a Tenda estava estabelecida. A dor aumentou quando Mãe Leonor descobriu que o marido a traía, o que poderia explicar o motivo de tantas brigas e tantas palavras de ofensa proferidas pelo homem bêbado. Foi a partir desse constante e diário sofrimento que Mãe Leonor tomou a triste decisão de fechar a Tenda de Pai João por tempo indeterminado.
Depois disso, o caos tomou conta da vida de Mãe Leonor e sua família. As brigas saíram do limite doméstico e atingiram o comércio mantido pelo casal. Alcoolizado, Placedino invadia o restaurante e expulsava os fregueses sem que eles pagassem o consumido. O restaurante, outrora tão bem freqüentado, agora só acumulava dívidas. A única solução era vender o estabelecimento. Teve início também uma trajetória de venda das lojas por preços muito abaixo do mercado imobiliário, o que trouxe para o casal grande prejuízo e ruína. E, assim foi feito com todos os imóveis do casal Leonor e Placedino. Lojas, casas e terrenos conseguidos depois de tanto suor e trabalho foram desaparecendo das vistas de todos que, assombrados, não entendiam o porquê de tamanha decadência.

O Terreiro de Umbanda, o último bem e, certamente, o mais precioso de todos ainda resistia à tempestade que se abateu sobre a Mãe de Santo Leonor Gomes. Porém, em 1986, a Tenda Espírita Pai João foi vendida. O terreiro de Umbanda da Rua da Marinha encerrou definitivamente suas portas para transformar-se em residência comum. Mobília, material ritualístico, imagens e demais utensílios usados nas Giras foram jogados ao mar, na Baía de Guanabara, Rio de Janeiro.
Divorciada e vivendo modestamente, Mãe Leonor não se desesperou com a situação. Sofreu resignada e em silêncio todas as adversidades que lhe sobrevieram. Apesar de tão grande desgosto, procurava manter vivo um sorriso nos lábios. Sua integridade não sofreu abalo. Sua visão prática da vida a mantinha sóbria e totalmente lúcida. Mesmo depois da morte súbita do ex-marido, Mãe Leonor, ou Nonô – como era chamada pelos amigos e parentes -, permanecia com a cabeça levantada e não entregava os pontos.
Nascida em 18 de dezembro de 1928, Leonor Maria Gomes Marques gozou os remanescentes dias de sua vida ao lado dos netos e bisnetos, seus últimos e maiores bens que possuía na terra. Os médicos diagnosticaram, após vários exames, que Nonô sofria de “coração grande”, ou na linguagem científica, cardiomegalia, que causa o crescimento do tamanho do coração em proporções anormais. A descoberta do problema provocou sua internação repentina para uma possível cirurgia.
Internada num hospital de Cachoeiro do Itapemirim, cidade natal de Roberto Carlos, o cantor por quem nutria a maior admiração, Nonô pediu que irmãs e sobrinhos fossem visitá-la antes da cirurgia a que ia se submeter. Sorrindo, como sempre, abraçou a todos os que a visitaram, dando palavras de conforto e carinho. Entretanto, o Enorme Coração de Mãe Nonô não resistiu à cirurgia e, finalmente, no dia 14de julho de 2007, faleceu aos setenta e oito anos de idade, deixando saudades e pesares de parentes, amigos e filhos de terreiro que tiveram o privilégio e a honra de conviverem com tão doce criatura.

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